O Palmeiras perdeu para o Botafogo e praticamente deu adeus ao sonho do tricampeonato brasileiro consecutivo. A derrota por 3 a 1 expôs as fragilidades apresentadas pelo time no ano inteiro e trouxe questionamentos válidos às escolhas e ao trabalho da comissão técnica, Abel Ferreira à frente.
Mais uma vez o time criou e desperdiçou chances com o jogo em 0 a 0. Mais uma vez, cometeu falhas cruciais na defesa. Mais uma vez, aparentou não estar devidamente preparado para os grandes jogos. Foi um ano em que o time não funcionou, não deu liga. Como eu escrevi meses atrás, erros de planejamento levaram a um trabalho de trocar pneu com o carro andando. Que não deu certo. E, mesmo assim, ainda está matematicamente vivo na briga pelo título.
(Se a matemática permite, eu ainda sonho.)
Glória a quem trabalha o ano inteiro em mutirão
São escultores, são pintores, bordadeiras
São carpinteiros, vidraceiros, costureiras
Figurinistas, desenhista e artesão
Gente empenhada em construir a ilusão
Já tem algumas semanas que os versos do Martinho da Vila levados à Sapucaí há exatos 40 anos me vêm à cabeça. Desde a vitória suada contra o Grêmio, com 695 chances perdidas de gol, seguida pelo empate do Botafogo contra o Cuiabá, que parece ter sido meses atrás.
Na minha mente, eram dez dias de tensão e ansiedade por esta semana que seria decisiva, tendo de aturar uma Seleção Brasileira lamentável durante uma Data Fifa que parecia eterna para que toda a esperança se dissolvesse em 90 minutos de mais uma atuação abaixo da crítica numa quarta-feira - que não seria a de Cinzas, mas a do dia da Consciência Negra.
São quase 20h de um feriado que se mostrou mais cansativo do que o esperado quando olho no celular e o aplicativo me mostra: “Bahia 2-1 Palmeiras”. Guardo de novo o aparelho no bolso e me dirijo ao caixa da quitanda, trocando o aborrecimento com os preços, especialmente o da laranja Bahia, pelo discurso que marca os primeiros parágrafos deste texto, até que a passagem pelo caixa me desvia o aborrecimento para os preços das frutas. “Pior que essa laranja Bahia ainda tá feia”, penso comigo mesmo, sem fazer na hora nenhuma relação entre a fruta e o algoz daquele momento.
Mas passam-se alguns minutos e olho de novo o celular para ver que o gol do Bahia foi anulado. “Menos mal, vai que o Botafogo se enrola com o Galo”, penso, e me dirijo ao estacionamento com as compras empacotadas e já satisfeito com o empate. E ainda estou com o aparelho na mão quando arrasto a tela para atualizar e, bingo, gol do Palmeiras. E a tensão se esvai, sendo substituída por risos em voz alta, enquanto abro o porta-malas ao mesmo tempo em que tento carregar o aplicativo da TV a cabo que já funciona odiosamente em conexões boas, imagina então na rua, num estacionamento de subsolo. O gol já foi e o Bahia está no ataque, mas a defesa abafa; consigo sofrer ouvindo os segundos finais no rádio e respirar aliviado. Sobrevivemos à quarta-feira.
Já o Botafogo, como sabemos, o Botafogo se enrolou com o Galo horas depois. E também com o Vitória, o mesmo Vitória que nos mandou para o inferno em 2002, que pisou na nossa cabeça em 2003 e que caiu no nosso lugar em 2014, empurrado por um gol do Santos. Enquanto isso, o Palmeiras conseguiu mais uma vitória com uma bolinha minúscula, rebaixando o Atlético-GO, e assumiu pela primeira vez a liderança do Brasileirão.
E na segunda-feira de manhã, enquanto ensaiava uma versão deste texto, ao mesmo tempo em que esperava pela vitória, pensava nos riscos de uma derrota justamente pelo histórico do ano: atuações pouco convincentes nos jogos grandes, marcados por excesso de nervosismo, chances desperdiçadas e, no fim, decepção.
Uma decepção que acaba sendo mais dura diante da esperança que se formou novamente nos últimos dias - ainda que tenha sido essa esperança com ressalvas, fundamentada muito mais na expectativa do que nos fatos. Enfim, tem outros troféus por aí. No fim das contas, o mais provável é que, mesmo com todo esse caminhão de ressalvas e críticas, o Palmeiras termine o ano como vice-campeão brasileiro, sem contar o tricampeonato paulista - que, se não tem mais o charme e a importância de outrora, ainda assim é um tricampeonato consecutivo que não conquistávamos havia 90 anos. Não está ruim, para mim. (E, lembrando: matematicamente, ainda não acabou.)
Não está ruim principalmente porque, se pegarmos 2024 inteiro, o Palmeiras deve ter feito não mais que 10 jogos realmente bons, de ponta a ponta. Se voltarmos mais um pouco, veremos que, mesmo na arrancada final do ano passado, as atuações não foram brilhantes, mas o time conseguiu ao menos recuperar a eficiência nos momentos decisivos. No Paulista, esse embalo ainda foi suficiente. No resto do ano, não apareceu.
Talvez o título inesperado de 2023 tenha impedido, ou atrasado, uma renovação que já se mostrava necessária. Como já disse, a chegada dos principais reforços ter acontecido somente no meio do ano, sem o tempo adequado para entrosamento e adaptação, expôs problemas na montagem do elenco e uma espécie de fadiga de material. Não está ruim, mas não foi bom o suficiente porque a régua ficou alta demais. O samba atravessou na avenida e, aparentemente, tudo se acabou numa noite de terça-feira.
O sambista é um artista
E o nosso Tom é o diretor de harmonia
Os foliões são embalados
Pelo pessoal da bateria
Sonho de rei, de pirata e jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira
O samba de Martinho da Vila é inspirado numa estrofe de “A Felicidade”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, em que o poeta e o maestro discorrem sobre a felicidade do pobre diante da “ilusão do carnaval”, em que se trabalha um ano inteiro para que tudo se acabe na Quarta-Feira de Cinzas.
A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
E tudo se acabar na quarta-feira
É um samba que, claro, é mais conhecido pelos seus versos iniciais:
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
É um pouco isso a vida do torcedor, né? A felicidade acaba, os times se alternam no topo, ninguém ganha todos os jogos. A diferença é que não podemos fazer nada de concreto para que o trabalho funcione, a não ser gritar e empurrar o time nos jogos, e no mais esperar. Esperar que a diretoria tome decisões adequadas, que o treinador faça as escolhas corretas, que o time siga corretamente às instruções.
O recorte dos últimos 10 anos é mais do que positivo. O dos 4 anos de Abel, então, nem se fala. Por “pior” que tenha sido o ano, e eu acho complicado até usar esse tipo de expressões se a gente comparar com, sei lá, 2014. Dez anos atrás, hein? O fato é que, a quente, fica difícil ter noção do tamanho do que este time está fazendo do ponto de vista histórico.
E, no mais, logo vem 2025 e começa tudo de novo. Tem o sonho do inédito tetra paulista na era do profissionalismo, tem Libertadores, Copa do Brasil e Brasileirão. Tem o tal Mundial que chamam de Super e eu ainda duvido até que aconteça (voltarei ao assunto). Tem mais Palmeiras em campo e a gente vai persistir. Porque, como diz o poeta:
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar