O Palmeiras é o time de virada (para quem pode pagar)
Com a atual política de precificação, ver o atual tricampeão paulista in loco exige uma conta bancária em boa forma.
O Palmeiras venceu o Liverpool por 3 a 1 na noite desta quinta-feira, em seu primeiro jogo em casa nesta Libertadores, mas o que dominou as discussões no dia seguinte ao jogo, pelo menos na minha bolha, foi o público sofrível: 28.365 pagantes para uma renda de R$ 2.820.210.
Isso dá uma ocupação aproximada de 70%, arredondando o público máximo para cerca de 40 mil quando há torcida visitante, caso do jogo de ontem. Ou, olhando pelo sentido contrário: tivemos 30% do estádio vazio no primeiro jogo em casa do ano pela Libertadores, o que chamou a atenção até do Abel.
Bom, não dava para se esperar muita coisa diante do preço dos ingressos: o mais barato custou R$ 200, para o Gol Norte, e o mais caro foi de R$ 380, para a Central Oeste - tudo isso apenas quatro dias de uma final que já teve ingressos a preços salgados, contra o rival que se projetava como o mais fraco da chave.
Como comparação, a gente pode pegar o jogo contra o Barcelona, que foi o primeiro a ser disputado no Allianz Parque na fase de grupos de 2023 (o primeiro havia sido contra o Cerro Porteño, no Morumbi). Ali, os ingressos variaram de R$ 180 a R$ 360, e o público da partida ficou em 33.602 pagantes, com renda de R$ 3.362.583,50.
Fazendo as contas (sou de humanas, mas sei usar mais ou menos Excel e calculadora), o tíquete médio ficou em valores similares: R$ 100,07 contra o Barcelona, no ano passado, e R$ 99,42 diante do Liverpool.
Mais números: na semifinal do Paulistão, contra o Novorizontino, com ingressos de R$ 150 a R$ 240, a renda foi de R$ 3.497.749,50, com público pagante de 40.448 pessoas. Na ponta do lápis, tíquete médio de R$ 86,47.
Claro que não dá para comparar o interesse do torcedor no jogo contra o Liverpool, ainda que seja de Libertadores, com uma disputa de mata-mata em jogo único que ainda por cima marcava a volta ao estádio após dois meses de “passeio” (haja aspas) em Barueri. Também jogavam contra a perspectiva de um Palmeiras com reservas, diante das diversas lesões sofridas ou pioradas na decisão contra o Santos (o que efetivamente aconteceu: Zé Rafael não jogou, Mayke entrou só no segundo tempo, Endrick só entrou no fim para, como diziam antigamente, “garantir o bicho”).
Mas, justamente diante de todos esses fatores, o normal seria fazer justamente o contrário na hora de precificar o jogo: dar um respiro ao torcedor, chamá-lo para junto do time que acaba de ser campeão, realizar uma grande celebração. No fim, foi o contrário: arquibancadas centrais visivelmente vazias até nas imagens de TV e, pior, dinheiro perdido com público e renda abaixo da média.
A obrigação de ser Avanti
A conta do tíquete médio é uma abstração que serve apenas para comparação, uma vez que muita gente não paga o chamado “preço cheio”, graças aos descontos oferecidos pelos diferentes planos Avanti nos diversos setores do Allianz Parque.
A questão principal é que, com essa precificação, o Palmeiras praticamente obriga seus torcedores a se associar ao Avanti: seja para conseguir ingressos “de graça”, seja para ter prioridade nas vendas em partidas mais importantes, em que a procura é acentuada e todo mundo aparece no Twitter reclamando que o sistema caiu.
Óbvio que todo clube quer valorizar seu programa de sócio-torcedor, que garante previsibilidade na arrecadação. Também é justo premiar a lealdade (fidelidade é em outro clube, perdão) dos torcedores sempre presentes na hora dos grandes jogos. O problema é que essa política, como está posta, afasta completamente o torcedor de baixa renda e dificulta a vida dos torcedores eventuais, que não podem ir a todos os jogos - mas nem por isso amam menos o Palmeiras.
Claro que falo de mim, ou seja, alguém que mora no interior, mas perto de São Paulo, que até poderia ir a jogos uma ou duas vezes por mês, por exemplo, com um preço viável, já que a minha “experiência” de jogo também inclui transporte, de ônibus ou de carro. Mas penso em quem mora mais longe, tipo Ribeirão Preto, a uma distância que exige se hospedar em São Paulo para ir à partida, ou transformar isso numa jornada de dia inteiro - sair de casa às 10h e voltar quase à meia-noite para uma partida às 16h.
E o turista? Por exemplo, um apaixonado pelo Palmeiras que deu sorte de ter uma viagem a trabalho para São Paulo marcada justamente num dia de jogo (ou que mexeu os pauzinhos para que essa “sorte” acontecesse): quanto mais vai custar essa aventura? O que o Palmeiras faz para atrair esse torcedor? Enfia a faca nele.
Esses são só alguns exemplos (“personas”, no linguajar do marketing) que o clube não consegue atender e para quem o Avanti é inútil. Ele até tem um programa de vantagens, mas com benefícios bem meia-boca na comparação com outros sistemas semelhantes, e não oferece ao torcedor que não vai a jogos com frequência nada além do prazer de dizer “ajudo o clube”. Em um Brasil empobrecido como o atual, quem pode abrir mão de dinheiro apenas em nome da paixão?
E tem o outro lado: para quem mora em São Paulo e resolve fazer o plano, o Avanti e o Palmeiras acabam se tornando uma obrigação. O torcedor que tem o plano Ouro, a R$ 144,99 por mês, não paga ingresso para o Gol Norte; mas, para ter chance de estar nos jogos contra Novorizontino e Santos, teve que ir a praticamente todos os jogos em casa na fase de classificação (inclusive em Barueri), ou então dificilmente conseguiria o rating para obter a entrada dos jogos decisivos “de graça”.
Voltando à calculadora: quatro meses de Avanti Ouro, de janeiro a abril, custaram R$ 579,96 pelo direito de assistir a nove jogos pelo Paulistão, sendo cinco no Allianz e quatro em Barueri; o jogo contra o Liverpool; e as partidas da semana que vem pelo Brasileirão contra Internacional (de novo em Barueri) e Flamengo (no Allianz). Dá um valor bastante razoável de R$ 48,33 por partida, na combinação mais barata possível que o Palmeiras oferece hoje.
Só que isso cria essa relação estranha que transforma o passatempo em missão, a alegria de acompanhar o time em sensação de que é preciso bater ponto no estádio. O associado vai ao jogo não necessariamente porque QUER ou GOSTA, mas porque PRECISA - justificar a si mesmo o valor pago pelo plano, manter o rating em dia, ter a chance de ir numa eventual decisão. O que deveria ser lazer e diversão se torna tarefa - e ainda gera um mercado paralelo marcado por suspeitas de cambismo e que realmente não sei como o clube resolveu após a adoção da entrada por meio do reconhecimento facial.
(Da última vez que fui ao Allianz, e lá se vão mais de cinco anos desde o dia em que Bruno Henrique acabou com o jejum de gols de falta diante do Atlético-MG no Brasileirão de 2018, usei um cartão Avanti emprestado do titular, um conhecido de redes sociais que não poderia ir ao jogo e que encontrei pela manhã ali no Bourbon, em troca de R$ 40; depois do jogo, outro amigo devolveu a ele o cartão.)
Robin Hood às avessas
Tem mais duas coisas que me incomodam acima da média ao discutir a precificação de ingressos cobrado pelo Palmeiras.
A primeira é que o assunto não é novo; ao contrário, discute-se isso praticamente desde a abertura do Allianz Parque após a reforma, e lá se vão quase 10 anos. Escrevi algumas vezes sobre o tema no finado Corneta & Amendoim, blog que publiquei no site da ESPN entre 2015 e 2019, e lembro que, no começo, colava forte a cascata consagrada após a Copa de 2014 de que “o futebol ficou mais caro, time bom e estádio novo têm custos, o torcedor precisa entender”. De minha parte, eu dizia que o efeito novidade do estádio uma hora ia acabar, e que o clube devia buscar outras maneiras de se financiar além de extorquir o torcedor.
Felizmente, quanto mais o tempo deixa no passado a desgraça que foi o time de 2014, exemplo sempre citado por quem me dizia naquele tempo “você quer um time forte ou brigar contra o rebaixamento todo ano?”, mais as pessoas têm se conscientizado sobre a importância do tema - que, não vamos esquecer, foi promessa de campanha da presidente Leila Pereira, cumprida no começo, depois esquecida e por fim destroçada com a declaração dela, em janeiro, de que os torcedores sem dinheiro podem ir ver jogos da base.
E isso diz respeito também ao meu outro incômodo: a pouca diferença de preço entre o ingresso mais barato e o mais caro. Se os modelos de sócio-torcedor e rating para prioridade da compra são de certa forma universais, o modelo de precificação imposto pelo Palmeiras, numa sociedade tão desigual como o Brasil, se transforma numa redistribuição de renda que só alimenta a desigualdade: dos mais pobres para os mais ricos.
Aos números, de novo: no jogo de ontem, como já citei, o ingresso mais barato custava R$ 200 e o mais caro, R$ 380, uma diferença de 90%.
No caso do Avanti, piora: o plano mais caro, o Diamante, custa R$ 779,99 por mês e dá direito à inclusão gratuita de dois dependentes, sem exigência de parentesco, com desconto de 100% em qualquer ingresso, inclusive na Central Oeste, e compra na primeira pré-venda. De janeiro até abril, considerando quatro mensalidades, 12 jogos e 36 ingressos, temos o valor por ingresso de R$ 86,66 - diferença apenas 79,31% maior que o mesmo valor na conta feita acima com o Avanti Ouro.
São números que não levam em conta que o impacto de um ingresso - ou mesmo de um plano mensal - acaba sendo muito maior no orçamento dos torcedores mais pobres. E que a diferença de renda entre as classes sociais no Brasil é infinitamente maior do que 80%.
E não se trata (apenas) de querer fazer justiça social com o futebol, mas de entender o óbvio. Mundo afora, são incontáveis os exemplos de clubes e federações que usam os ingressos mais caros para subsidiar de alguma forma os mais baratos a fim de maximizar o espetáculo sem comprometer o orçamento. Não tenho dados exatos sobre carnês e programas de fidelização, mas vou lançar aqui alguns exemplos isolados como comparação
o Real Madrid vende aqui ingressos avulsos para o próximo clássico contra o Barcelona, em 21 de abril, a preços que partem de 125 euros até 385 euros, diferença de 208%;
segundo o Gustavo Hoffman, correspondente da ESPN na Espanha, para a final da Liga Europa, que será em Dublin, o ingresso mais barato custa 40 euros; o mais caro, 150 euros - 275% de diferença;
para a final da Liga dos Campeões, em Wembley, a variação explode para 916%, com ingressos variando entre 60 e 610 libras.
(E eu nem vou aprofundar aqui a discussão sobre a diferença entre 60 libras para a média de um trabalhador assalariado inglês e 200 reais para um brasileiro na mesma condição.)
Eu sei que o Palmeiras não é projeto social, mas, por outro lado, também (ainda) não é uma SAF, tampouco uma empresa de capital aberto que precisa repartir o lucro entre o dono e seus acionistas. É possível encontrar um modelo de arrecadação que inclua as modalidades mais caras de planos Avanti, ingressos VIP a preço mais salgado e a venda de camarotes corporativos, além da busca por melhores contratos de patrocínio e de direitos de TV, para garantir a possibilidade de ter uma parcela de ingressos mais baratos sem comprometer o orçamento e a montagem do time.
O problema é que ir além do óbvio dá trabalho, né?